Protesto de nota promissória vinculada a contrato de abertura de crédito

Protesto de nota promissória vinculada a contrato de abertura de crédito
sua admissibilidade

É assente o entendimento no STJ acerca da inexequibilidade da nota promissória emitida como garantia no contrato de abertura de crédito em conta corrente. Como nesse tipo contratual o objeto é a disposição de certo numerário, dentro de um limite prefixado, na verdade débito algum existe quando é assinado, podendo se constituir com os atos subseqüentes do correntista (como, p. ex., a emissão de cheques) que importem na utilização do crédito (sempre dentro do limite concedido). O banco abre ao correntista (creditado) um crédito em conta corrente, com limite fixo, destinado a constituir reforço de provisão, que vai sendo consumida a depender das suas necessidades, mediante saques, transferências, pagamentos ou emissões de cheques. O débito que se constitui, portanto, é variável na proporção da utilização do direito de acesso ao capital bancário aberto ao correntista. Essa indeterminação prévia do quantum devido fez com que alguns considerassem que o contrato de abertura de crédito não gozava de liquidez suficiente a aparelhar processo de execução. Apesar desse entendimento, sempre se entendeu que, desde que acompanhado dos devidos extratos que comprovem o valor do débito, o contrato de abertura de crédito enquadrava-se como título executivo extrajudicial. Mas a jurisprudência terminou prevalecendo, no sentido de que a juntada de documentos complementares não supre o aspecto da certeza e liquidez fundamentais para a ação executiva, além do que não teriam valor por serem produzidos de “forma unilateral” pela instituição bancária, conforme se pode ver da ementa de acórdão da relatoria do então Ministro Eduardo Ribeiro, assim ementado:

“Contrato de abertura de crédito. Limitando-se a ensejar a utilização de determinada quantia, não consubstancia obrigação de pagar quantia determinada, inexistindo correspondência com o modelo previsto no artigo 585, II do C.P.C. Impossibilidade de o título completar-se com extratos fornecidos pelo próprio credor que são documentos unilaterais. Não é dado às instituições de crédito criar seus próprios títulos executivos, prerrogativa própria da Fazenda Pública” (REsp. n. 66.304-0-PR, DJU de 23.09.66, rel. Min. Eduardo Ribeiro).

No seu voto, o Ministro relator do acórdão acima transcrito salientou:

“Afirma-se que a falta tem-se por suprida com a apresentação de extratos pelo banco que abriu o crédito. Ora, isso se admitindo, estar-se-á criando outro título executivo, que de nenhum modo se compreende no citado dispositivo da lei processual. Os extratos são documentos unilaterais. Deles não consta qualquer declaração do devedor. Com todo o respeito, parece-me que o entendimento ora contestado importa aceitar que as instituições de crédito, à semelhança da Fazenda Pública, possam criar seus próprios títulos executivos” (grifo nosso).

Com a devida vênia, mas o extrato da conta corrente não é documento complementar do contrato, e sim documento integrante, eis que, através dele se precisa o valor do capital mutuado em determinado período. Além disso, em geral os contratos de abertura de crédito contêm cláusulas estabelecendo que servem como prova da dívida os registros de movimentação tais como compensação de cheques, saques, transferências (inclusive por meio eletrônico), ordens, recibos e avisos de débito lançados diretamente na conta corrente. Os extratos bancários, portanto, são documentos suficientes para demonstrar a existência do negócio jurídico estabelecido entre as partes, bem como suas conseqüências e repercussões. Na verdade, os extratos de conta bancária são ínsitos ao tipo de negociação contratada e representam a execução contratual, visto que significam a materialização contábil dos valores lançados. Se os extratos não servissem como prova do débito, também não serviriam para instruir a ação monitória ou qualquer outra ação de cobrança – a jurisprudência tem entendido que o demonstrativo do saldo e os extratos bancários mostram-se hábeis a instruir a ação monitória, pois demonstram a presença da relação jurídica entre credor e devedor e denotam indícios de existência do débito.

Ocorre que a jurisprudência que desconsidera o contrato de abertura de crédito como título executivo, ainda que acompanhado dos demonstrativos da evolução do débito, tornou-se majoritária (Resp. nº 158.039-MG, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4a Turma, in DJ de 3/4/2000); AgRg nos EREsp 197090- RS, rel. Min. Waldemar Zveiter, 2a. Seção, 09.02.2000, DJ 10/04/2000; Embargos de Divergência nos REsps 108.259-RS, 115.462-RS e 135.374-MG, REsp n. 64.462-RS, REsp 172212-RS), acabando por constituir Súmula do Superior Tribunal de Justiça, de seguinte teor:

“Súmula 233: O contrato de abertura de crédito ainda que acompanhado de extrato da conta-corrente, não é título executivo”.

Posteriormente, a Corte superior entendeu que a iliquidez que retira a força executiva do contrato de abertura de crédito transfere-se à nota promissória dada em garantia do negócio. A iliquidez que macula o contrato também atinge a nota promissória, por derivar da mesma relação obrigacional. Foi editada, então, nova Súmula representativa dessa extensão conceitual, nesses termos:

“Súmula 258: A nota promissória vinculada a contrato de abertura de crédito não goza de autonomia em razão da iliquidez do título que a originou”.

Embora não concordemos com essa jurisprudência, temos a compreensão de que muito dificilmente será modificada a médio ou curto prazo. O processo de alteração sumular, embora previsto, depende de uma mudança de concepção sedimentada em torno de determinado fenômeno, o que na prática é muito difícil de se conseguir, além do que a manutenção dos entendimentos sumulares confunde-se com um sentimento de segurança jurídica. Por isso que não pretendemos confrontar as súmulas, mas concorrer para que não induzam a compreensões disformes do seu real significado jurídico.

A jurisprudência expressa nas súmulas, exemplificativamente, não deve servir de lastro para pretensão de se anular o título (nota promissória) ou impedir que seja protestado. Atualmente temos observado que, servindo-se dela, as partes que negociaram esse tipo de contrato com bancos estão tomando a iniciativa de ingressar em juízo e requerer a anulação do título e o impedimento do protesto, antes mesmo de sofrerem a promoção de eventual processo executivo. A jurisprudência em questão não autoriza esse tipo de pretensão, porquanto se limita a impedir que a nota promissória vinculada a contrato de abertura de crédito enseje processo executivo. O título evidencia a exigibilidade da dívida, e deve continuar servindo para esse desiderato, por outros meios processuais (como a ação monitória ou de cobrança). De posse do título (nota promissória) e os extratos comprobatórios da disponibilidade do crédito, o banco pode promover a cobrança da dívida por esses outros meios[1], os quais conferem maior largueza procedimental para realizar eventual apuração ou acertamento, se necessário, inclusive com base em outras provas. Assim, não é correto se conceder medidas judiciais para simplesmente anular ou impedir o protesto de nota promissória, pela simples razão de ser vinculada a contrato de abertura de crédito, porquanto isso implicaria na prática em eliminar a exigibilidade da dívida (ainda que ilíquida) representada pelo título.

A jurisprudência do STJ, representada pela Súmula 258, dever ser recepcionada no sentido de que pode existir formalmente um título de crédito, mas que não seja apto a propiciar um processo de execução. Em outras palavras, além de se enquadrar em algumas das figuras predispostas nos incisos do art. 585 do CPC, para adquirir força executiva é necessário que o documento (representativo da dívida ou obrigação) ainda apresente as características de certeza e liquidez (como exigido pelo art. 586). “Destarte, há que se ver não se constituir o título executivo tão-somente com o documento que contenha a denominação e aqueles requisitos formais estabelecidos em lei. Na verdade, o documento somente poderá autorizar a execução forçada quando se tratar de título certo, líquido e exigível (art. 586 do CPC)” (Ministra Nancy Andrighi). Em suma, podemos nos deparar com um documento que satisfaça os pressupostos formais de um título de crédito, mas que, por não fornecer nele próprio os elementos para que se possa aferir a liquidez do débito, não pode ser tido como título executivo.

É o caso da nota promissória vinculada a contrato de abertura de crédito, uma vez que o objeto desse tipo contratual é a disposição de certo numerário, dentro de um limite prefixado. A nota promissória não é sacada como representativa do débito, mas como garantia de seu pagamento. A indeterminação antecipada do quantum devido, falta de liquidez característica do contrato de abertura de crédito, é transmitida à nota promissória vinculada, impedindo que seja utilizada para fins de execução, somente isso. O título de crédito vinculado ao contrato permanece formalmente válido, com força documental para outros fins, não servindo apenas para aparelhar processo de execução. A única imprestabilidade da nota promissória assim emitida, ou seja, vinculada a contrato de abertura de crédito, é não poder servir como instrumento da execução, dada a falta de liquidez, como já vimos. Mas se o título e o contrato a que está vinculado não atestam documentalmente a “liquidez” da dívida, requisito formal da execução (art. 586 do CPC), é certo que eles evidenciam sua exigibilidade. Servem para comprovar a existência do negócio jurídico e seus efeitos, dentre os quais a obrigação de pagamento, a circunstância de ser exigível a dívida (não paga) do correntista. A nota promissória continua sendo um título de crédito, ou seja, um documento representativo de uma obrigação e emitido de conformidade com a legislação específica[2].

Esse realmente é o entendimento adequado e que respeita o conteúdo das Súmulas do Superior Tribunal de Justiça (Súmulas 233 e 258). Por força da orientação jurisprudencial contida nessas súmulas, a nota promissória permanece válida, sendo apenas retirada do credor a via executiva. Os demais efeitos decorrentes da existência do título permanecem válidos, preservando-se inclusive as demais qualidades que marcam os títulos cambiariformes, como a literalidade e a cartularidade. Quando se menciona que a nota promissória vinculada a contrato de crédito rotativo perde sua autonomia[3], apenas se está a indicar que não se presta a propiciar, de forma isolada, processo executivo. Como se sabe, autonomia é “a característica dos títulos de crédito que permite a seu possuidor de boa-fé o exercício pleno do direito creditório neles mencionado, independentemente das relações entre seus anteriores possuidores e o devedor, e da titularidade de quem lhe transferiu o título, por ser o direito nele expresso constitutivo, gerador, pois, de uma nova relação jurídica, que é autônoma”[4]. Como bem resume Amador Paes de Almeida, “cada obrigação que se estabelece é autônoma com relação às demais”[5]. Assim, “os vícios que comprometem a validade de uma relação jurídica, documentada em título de crédito, não se estendem às demais relações abrangidas no mesmo documento”. Nesse sentido, o vício originário (iliquidez) do contrato de abertura de crédito se transfere à nota promissora, a qual, por ter perdido sua autonomia, também não vai servir para aparelhar processo executivo. Se o beneficiário do crédito inscrito no título utilizá-lo para documentar uma ação de execução, o executado (devedor) poderá arguir a sua iliquidez e requerer a extinção do processo. Se por outro lado, fizer circular o título, o executado também poderá levantar o mesmo vício contra eventual possuidor. A perda da autonomia se limita a isso, não atingindo as outras características do título, que permanece válido, inclusive para efeito de cobrança por outros meios judiciais.

As Súmulas 233 e 258 não autorizam, portanto, interpretação que permita concluir que os títulos (contrato de abertura de crédito e nota promissória) sejam nulos ou despidos de qualquer efeito creditício ou cambiariforme. Não se pode pretender a nulidade da nota promissória vinculada a contrato de abertura de crédito em conta corrente, nem retirar do credor a legitimidade para o protesto, porquanto o título continua a existir validamente, representativo de dívida não paga. Todos os demais efeitos decorrentes da existência do título permanecem incólumes. Não é correto, por conseguinte, conceder cautelar ou qualquer outra medida judicial para impedir o protesto de nota promissória com apoio exclusivamente no conteúdo das mencionadas súmulas (233 e 258).

Com esse sentir, é que discordamos de decisões que emprestam uma extensão não autorizada pelo entendimento originado pelas Súmulas 233 e 258, a exemplo do acórdão proferido no Resp 500433-PR, onde se firmou ser indevido o protesto de nota promissória vinculada a contrato de crédito rotativo, nesses termos;

“Cautelar de sustação de protesto. Súmulas nºs 233 e 258 da Corte.

  1. Não tem autonomia a nota promissória vinculada a contrato de crédito rotativo, com o que, nos termos das Súmulas nºs 233 e 258 da Corte, não se reveste das formalidades necessárias para a sua validade. Procedente a cautelar de sustação de protesto.
  2. Recurso especial conhecido e provido” RESP 500433/PR, Min. Carlos Alberto Menezes de Direito, Terceira Turma, DJ 07/08/2003, p. 327)

Essa nova jurisprudência representada pelo acórdão acima transcrito, além de emprestar uma interpretação errônea aos enunciados sumulares, que, como vimos, não proclamam a invalidade da nota promissória vinculada a contrato de abertura de crédito (a não ser para o fim específico de promoção de ação executiva), também não atenta para o conceito técnico do ato de protesto cambial, que não é uma espécie de fase pré-processual da ação executiva. Trata-se de medida extrajudicial, sem natureza processual civil. Pode ser definindo como a formalidade destinada a servir de prova da impontualidade no pagamento de obrigação constante de título de crédito ou documento de dívida. Mas além desse efeito probatório, o ato de protesto tem outras finalidades, como explica Pedro Nolasco de Araújo, que aponta também os seguintes efeitos para o ato em questão: coercitivo, constitutivo, público e regressivo. De fato, lembra ele que o instrumento de protesto não se limita a servir como prova da impontualidade do devedor (efeito probatório), mas também para coagir com a ameaça da falência (efeito coercitivo), constituir em mora o aceitante (constitutivo), dar publicidade do fato a terceiros (público), e para possibilitar o exercício do direito de regresso contra os coobrigados (regressivo)[6]. Observa-se, portanto, que o protesto produz não só efeitos entre as partes mas também perante terceiros. Entre as partes, caracteriza a impontualidade, o descumprimento da obrigação, faz surgir a mora e o atraso culposo. Perante terceiros, revela a inidoneidade financeira ou insolvabilidade. Ao se vedar que a nota promissória (vinculada a contrato de abertura de crédito) seja levada a protesto, vai se impedir a produção de todos esses efeitos que resultam do ato, o que certamente não foi o que se pretendeu ao editar as Súmulas do STJ (233 e 258). A obstrução ao protesto configura uma proibição à salvaguarda de direitos cambiários.

Mesmo que se entenda que a inteligência das Súmulas reside em retirar qualquer efeito cambiário de nota promissória emitida nessas circunstâncias, desnaturando-a por completo como título de crédito, ainda assim não se poderia impedir o protesto da cártula. É que a Lei que regula o protesto cambial (Lei n. 9.492/97) prevê a possibilidade de sua realização em relação a uma infinidade de situações não abrangidas pelos títulos de crédito, conforme se depreende de seu art. 1o., assim redigido:

“Art. 1º. Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida.

Nessa direitura, ainda que não se considere título de crédito, a nota promissória vinculada a contrato de crédito rotativo é, inegavelmente, um documento que representa dívida, sendo, portanto, protestável nos termos da Lei supra transcrita.

É realmente inconcebível se pretender que o devedor, assim compreendido o emitente de nota promissória ou indicado pelo credor como responsável pelo cumprimento da obrigação, não possa figurar no termo de lavratura e registro do protesto. As Súmulas do STJ (233 e 258) tão somente proclamam que a falta de liquidez da dívida constante de nota promissória vinculada a contrato de crédito rotativo impede que o credor dela se utilize para promover processo executivo, mas em nenhum momento reconhecem a extinção da obrigação. Para que se possa cancelar o registro de protesto é necessário que a decisão judicial reconheça a própria extinção da obrigação. Portanto, obstar o protesto de título ou documento de dívida sem reconhecimento da própria extinção da dívida equivale a desmantelar a regularidade dos serviços cartorários concernentes ao protesto, anulando as garantias de autenticidade, publicidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.


[1]  O próprio STJ tem reconhecido que o contrato de desconto de títulos acompanhado dos extratos do saldo e de cópia do título, comprovando o creditamento na conta corrente, serve para viabilizar a cobrança da dívida pela via do procedimento monitório (REsp n. 195972-MG, 4a. Turma, rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, DJ 13.08.2001). Não dispondo de título executivo, “é viável a ação monitória baseada em contrato de borderô de desconto que contenha os elementos necessários a identificar os encargos e taxas cobrados, restando clara a forma com que o credor calcula a evolução do débito. O contrato de borderô de desconto de cheques, acompanhado de títulos não saldados emitidos em nome do contratante e os extratos com a liberação a ele correspondente, serve a demonstrar que o valor indicado nos cheques foi creditado” (TJPR – 15a. C.Cível – AC 0394083-8, rel. Des. Hamilton Mussi Correa, ac. un., j. 28.02.07).

[2]  A definição mais corrente para título de crédito, elaborado por Vivante, é “documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado”.

[3]  Súmula 258. Precedentes: STJ-3a. Turma, REsp 264850/SP, rel. Min. Ari Pargendler, rel. p. ac. Min. Nancy Andrighi, j. 15.12.00, DJ 05.03.01; 2a. Seção, EREsp 262623/RS, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22.02.01, DJ 02.04.01.

[4]  MIANO, Bruno Machado. Autonomia dos Título de Crédito. Artigo publicado no site

[5]  ALMEIDA, Amador Paes. Teoria e Prática dos Títulos de Crédito, ed. Saraiva, 18.ª ed., 1.998.

[6]  Protesto Cambial, artigo publicado na Revista da OAB Goiás  Ano XI nº 30.

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